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A primeira grande greve

potilhados vermelhos


Fizemos aquela greve na raça e no coração. Mobilizamos a família, os amigos e os juristas que se solidarizaram conosco, participando dos nossos anseios, porque acreditavam nas nossas reivindicações. Foi um marco que trouxe crescimento a minha vida profissional e responsabilidades para toda categoria.[1]



O Congresso Nacional havia convocado, pela Emenda Constitucional n.º 26, de 27 de novembro 1985, a Assembleia Nacional Constituinte destinada a revogar todo o entulho autoritário que sustentara a ditadura militar. Este gesto mobilizava os mais diversos segmentos que queriam indicar os futuros constituintes. O Brasil respirava o rebelde clima da transição política. A imensa mobilização para que votássemos em eleições diretas para presidente da República resultou, após a rejeição da Emenda Dante de Oliveira, na eleição indireta de Tancredo Neves. Meses depois, empossado em lugar de Tancredo Neves, o presidente José Sarney surfava na onda da popularidade do Plano Cruzado, lançado no dia 28 de fevereiro de 1986, fazendo vários brasileiros usarem o bordão:

Eu sou Fiscal do Sarney.

A estabilidade econômica durou até as eleições gerais, gerando um clima de golpe eleitoral. A CUT e a CGT convocaram uma greve geral em protesto ao Plano Cruzado-Funaro que, após as eleições, externava as suas contradições e falhas. Atendendo ao chamado, o Brasil, no dia 12 de dezembro de 1986, amanheceu com mais de vinte e quatro milhões de trabalhadores, metade do contingente nacional, cruzando braços, reivindicando melhores salários para os diversos setores produtivos, o fortalecimento das empresas estatais, a busca pelo congelamento dos preços e o não pagamento da dívida externa. 

A maior greve geral do Brasil foi precedida por uma das maiores greves do movimento sindical sergipano. No iniciar do mês de agosto, sem qualquer aviso, dois mil trabalhadores da estatal Petromisa cruzaram os braços. O estopim do movimento paredista fora a demissão de dez dirigentes[2] da entidade sindical representativa da categoria, a Apemise – Associação Profissional dos Trabalhadores das Indústrias da Extração de Minerais não Metálicos do Estado de Sergipe, posteriormente transformada no Sindimina – Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Minerais não Metálicos do Estado de Sergipe. Eles trabalhavam para a empresa Organizações TED de Serviços Ltda., uma empreiteira carioca que servia de disfarce para concretizar os desvios dos dirigentes da Petromisa. Ninguém ingressava na estatal sem ter um “estágio empregatício” na terceirizada amiga.

O Sindiquímica apoiou a greve, imediatamente solicitando a minha presença no Complexo Taquari-Vassouras, palco da concentração dos grevistas. E para lá nos deslocamos em companhia dos dirigentes sindicais. A cena tinha ares revolucionários. Os trabalhadores estavam acampados na porta da fábrica, acompanhados de suas respectivas famílias, crianças correndo para todos os lados, barracas vendendo comida. Era o segundo dia da greve que também se configurava de ocupação. Eu dormi alguns dias no acampamento grevista, compreendendo e vivendo o espírito daquele movimento reivindicatório. A solidariedade também ganhava forma nas músicas, nas peças de teatro e nas vivências realizadas como forma de estimular a aguerrida luta.

Logo descobri que os chefes da empresa haviam abandonado o complexo industrial, cabendo aos trabalhadores a manutenção do maquinário. Também no local estavam vários políticos sergipanos, até porque já havia sido deflagrado o processo eleitoral, quando seriam eleitos governador, senadores, deputados federais e estaduais. Na semana seguinte seria realizada uma das mais emocionantes missas de que já participei, especialmente porque celebrada pelo histórico bispo de Propriá, Dom José Brandão de Castro, personagem marcante nas lutas fundiárias e sociais em Sergipe, cuja casa episcopal eu visitava em minha infância.

A Petromisa havia instaurado um dissídio de greve, instrumento processual desconhecido dos jovens advogados que defendiam os trabalhadores. Reunido o comando de greve, liderado por Zé Eduardo Dutra, decidiu-se que Marcelo Déda e eu cuidariam da defesa no dissídio coletivo. Coube-me, também, a redação da ação de trabalhista de reintegração dos demitidos. Resolvemos a questão do conhecimento técnico com a contratação do advogado trabalhista Ailton Daltro Martins. Assim, na minha primeira sustentação, refletindo a defesa elaborada a três cabeças, ganhamos o processo, sendo o dissídio julgado extinto sem julgamento do mérito.

Usei na sustentação oral os depoimentos que escutei dos mineiros, especialmente nos dias em que acampei, com eles, na porta da empresa ocupada. A partir desta experiência, procurei fazer das minhas manifestações jurídicas um relato vivo do meu olhar sobre o sentimento das pessoas e das entidades em julgamento. Permito-me, com isto, interpretar o fato jurídico pela lógica do justo a ser aplicado para cada caso em concreto. E assim, após enquadrar a questão pela ótica do que entendo como justo, procuro o melhor direito a ser aplicado naquela ocasião. Afinal, como registrei no meu livro 140 Curtidas:

O advogado tem o papel de extrair a emoção no amontoado de páginas monótonas que chamamos de processo. Ele é o poeta da Justiça.


*Texto do livro "Fiz-me advogado na luta: o início". BRITTO, 2016.



[1]Alcides Antônio dos Santos Júnior, mineiro, dirigente sindical, anistiado político.

[2]Adão Alves do Santos, Alcides Antônio dos Santos Júnior, Carlos Alberto Pascoal de Lima, Damião Menezes de Lima, Jailton de Jesus, Marcelo Farias Barreto, Marivaldo Alves dos Santos, Moisés Aparecido Siqueira, Othon de Jesus Morais e Romildo Cerqueira Santos.