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O STF e o piso salarial nacional da enfermagem

potilhados vermelhos

Muito se comenta criticamente sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal quando, acionado, ainda que por mecanismos previstos na Constituição – a exemplo de mandado de injunção, ação direta de inconstitucionalidade por omissão, arguição de descumprimento de preceito fundamental – supre omissões legislativas, estabelecendo as normas a serem aplicadas (no que apontada interferência na função legislativa) ou determinando a execução de determinadas políticas públicas na forma e modo por ele determinados (no que apontada interferência na atividade governativa).

O que pouco se comenta (ou comenta-se sem a mesma ênfase crítica) é a atuação do STF quando declara a inconstitucionalidade de leis ou normas produzidas democraticamente no contexto do devido processo legislativo, notadamente quando se trata de leis que materializam importantes avanços sociais e econômicos.

Acabamos de nos deparar com mais um exemplo, com a decisão monocrática do Ministro Luís Roberto Barroso que concedeu medida cautelar para suspender a eficácia da Lei nº 14.434, de 4 de agosto de 2022, que instituiu o piso salarial nacional do Enfermeiro, do Técnico de Enfermagem, do Auxiliar de Enfermagem e da Parteira, “até que sejam esclarecidos os seus impactos sobre  a situação financeira de Estados e Municípios, em razão dos riscos para a sua solvabilidade, a empregabilidade, tendo em vista as alegações plausíveis de demissões em massa e a qualidade dos serviços de saúde, pelo alegado risco de fechamento de leitos e de redução nos quadros de enfermeiros e técnicos”.

Ora, o piso salarial nacional da enfermagem foi uma conquista social muito importante para essa categoria profissional e para a sociedade, beneficiada com os relevantes serviços prestados e que foram tão comemorados e justamente homenageados nos momentos mais críticos da pandemia do coronavírus.

Tratou-se de importante arranjo legislativo, bem engendrado, para fazer valer direito fundamental social assegurado na Constituição.

Com efeito, primeiro foi promulgada a emenda constitucional nº 124 (em 14/07/2022), que instituiu o piso salarial nacional do enfermeiro, do técnico de enfermagem, do auxiliar de enfermagem e da parteira.

Foram acrescentados ao Art. 198 da Constituição (“As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:[…]”) os parágrafos 12º e 13º, com os seguintes conteúdos:

“§ 12. Lei federal instituirá pisos salariais profissionais nacionais para o enfermeiro, o técnico de enfermagem, o auxiliar de enfermagem e a parteiraa serem observados por pessoas jurídicas de direito público e de direito privado.

§ 13. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, até o final do exercício financeiro em que for publicada a lei de que trata o § 12 deste artigo, adequarão a remuneração dos cargos ou dos respectivos planos de carreiras, quando houver, de modo a atender aos pisos estabelecidos para cada categoria profissional.”.

piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho é um direito fundamental social dos trabalhadores (Art. 7º, inciso V). Tal piso salarial deve ser estabelecido em lei federal (afinal, é a União competente privativamente para legislar sobre direito do trabalho – Art. 22, inciso I).

A necessidade de uma emenda constitucional para prever na Constituição a garantia do piso salarial nacional de uma profissão que é exercida tanto por trabalhadores pelo regime jurídico da CLT (e portanto empregados de empresas privadas ou de pessoas jurídicas de direito privado) quanto por servidores públicos (federais, estaduais, distritais e municipais) decorre da autonomia dos entes federativos para dispor sobre o regime jurídico de seus próprios servidores; assim, sem previsão na Constituição, a lei federal não poderia impor a Estados e Municípios o piso salarial.

Com a previsão na Constituição dessa garantia do piso salarial, passa a ser da lógica constitucional a aplicação da lei federal – que, atendendo a determinação constitucional, fixa o valor do piso – também aos Estados e Municípios, nos mesmos moldes do que já ocorre por exemplo com o magistério.

Depois, em 04/08/2022, foi promulgada a Lei nº 14.434, que estabeleceu o piso salarial nacional do seguinte modo: R$ 4.750,00 (quatro mil setecentos e cinquenta reais) – enfermeiros; 70% do valor do piso – técnico de enfermagem; 50% do valor do piso – auxiliar de enfermagem e parteira, valendo frisar que a emenda 124 determina que todos os entes federativos adequem a remuneração dos cargos ou dos respectivos planos de carreira de modo a atender aos pisos estabelecidos até o final do exercício financeiro em que for publicada a aludida lei; como a lei foi publicada em 2022, essa adequação deverá estar concluída até o final deste ano.

Assim, o conjunto emenda constitucional nº 124 e lei ordinária nº 14.434/2022 compõe importante, justa e legítima conquista dos profissionais da enfermagem, e produz um regramento muito semelhante à sistemática da regulamentação do piso salarial nacional do magistério [à exceção da atualização anual do valor, prevista para o magistério (que conta com fonte própria de financiamento para tanto) e vetada pelo Presidente da República para os profissionais da enfermagem, por alegada inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público].

Ora, ainda que existam diversos precedentes específicos do STF sobre essa possibilidade processual, não há base legal para autorizar a concessão de medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade por decisão monocrática. A Lei nº 9.868/1999, que dispõe sobre o processo e o julgamento, pelo STF, da ação direta de inconstitucionalidade, estabelece, em seu Art. 10, que a medida cautelar será concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal, salvo no período do recesso. O STF não está em período de recesso, frise-se, havendo sessões plenárias ordinárias a ocorrer; o processo deveria, portanto, ser encaminhado para que, em sessão plenária (ainda que virtual), houvesse deliberação a respeito.

A excepcional urgência (urgência qualificada) comparece na Lei nº 9.868/1999 a autorizar apenas o deferimento da medida cautelar sem colher previamente a manifestação dos órgãos ou autoridades das quais emanou a lei questionada, mas não a autorizar que a cautelar seja concedida por decisão monocrática (ainda que, repita-se, existam diversos precedentes de concessão de medidas cautelares em ADI por decisão monocrática).

Observe-se que, a despeito de ter fundamentado o perigo da demora – a justificar a concessão da cautelar – na incidência imediata do piso salarial e “o alegado risco à prestação dos serviços de saúde, ante a ameaça de demissões em massa e de redução da oferta de leitos hospitalares”, a decisão não fundamenta a (eventual) impossibilidade de sua imediata submissão a apreciação em sessão plenária, o que seria justificativa razoável para a apreciação monocrática excepcionalíssima.

É mesmo muito preocupante que por decisão de um único Ministro do STF seja cautelarmente suspensa lei que resultou de importante arranjo legislativo elaborado democraticamente e acima mencionado, e que vem materializar direito trabalhista dos profissionais da enfermagem, a saber, o piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho (Art. 7º, inciso V) e, mais especificamente, o piso salarial profissional dos profissionais da enfermagem a serem observados por pessoas jurídicas de direito público (União, Estados, Municípios e Distrito Federal, bem como suas autarquias e fundações).

Mais ainda: o que pretende a decisão monocrática do Ministro Barroso é exatamente fazer com que o STF substitua a prognose legislativa efetuada no foro democrático adequado (Poder Legislativo), pois pretende obter informações que supostamente propiciarão ao STF avaliar “os seus impactos sobre  a situação financeira de Estados e Municípios, em razão dos riscos para a sua solvabilidade, a empregabilidade, tendo em vista as alegações plausíveis de demissões em massa e a qualidade dos serviços de saúde, pelo alegado risco de fechamento de leitos e de redução nos quadros de enfermeiros e técnicos”. É fazer do STF o “Supremo Legislador”, para não falar do uso de argumentos recorrentemente utilizados em reação a avanços sociais (risco de demissão em massa, falta de recursos etc.).

Dificilmente esse tipo de julgamento ocorre para suspender leis ou mesmo emendas constitucionais como as que, recentemente, proporcionaram enormes retrocessos nos direitos trabalhistas e sociais (a exemplo da reforma trabalhista, da reforma da previdência, do teto de gastos para investimentos sociais e terceirização).

É, infelizmente, a constatação de um fato: se é verdade que o Supremo Tribunal Federal tem sido, nesses últimos três anos, instituição garantidora da democracia formal e que tem contido os abusos e arroubos autoritários bem como ameaças de rupturas institucionais que flertam com golpes e fechamento do regime, tudo isso além do seu importantíssimo papel na contenção dos efeitos do negacionismo na condução das medidas de prevenção e combate ao coronavírus ao longo de toda a extensão da pandemia – que ainda não acabou – é verdade também que, não é de hoje, tem sido uma instituição que, no plano dos direitos e garantias fundamentais sociais e econômicos, tem atuado cada vez mais no sentido de conter os enormes avanços no tema determinados pela Constituição de 1988 e pelas convenções internacionais, em prejuízo dos trabalhadores e em benefício do poder econômico.

Maurício Gentil Monteiro